A revolução se alastra como rastilho de pólvora no deserto incendiando ditaduras pró e antiocidentais do Saara à Ásia Central. O combustível do fogo já não é a religião, mas sim a miséria. E nisso, a Europa empobrecida pelo neoliberalismo começa a parecer mais e mais com o Terceiro Mundo.
Por Vinicius Souza
Nada de choque de civilizações, retórica jihadista ou atentados terroristas espetaculares. As revoltas árabes atuais até têm sua origem nos levantes anti-colonialistas da segunda metade do século passado. O principal motivo, contudo, não é mais o controle formal de impérios europeus e sim o domínio econômico de organizações transnacionais que se confundem com alguns governos ocidentais. A nova onda revolucionária começou com um único jovem tunisiano, Mohamed Bouazizi, que ateou fogo ao próprio corpo em desespero por ter suas pobres mercadorias apreendidas pela polícia. A fagulha acendeu a ira popular que derrubou em menos de um mês, e com pouco mais de 200 mortes, o governo do presidente Zine el-Abidine Ben Ali, há 24 anos no poder. Dia 25 de fevereiro, mais de 100 mil tunisianos voltaram às ruas exigindo também a renúncia do primeiro-ministro interino Mohamed Ghannouchi, que abandonou o cargo três dias depois.
Por todos os lados, ditaduras longevas estão acenando com programas econômicos e o fim das reeleições permanentes. O correspondente do Asia Times, Pepe Escobar, informa que o monarca saudita, Abdullah al Saud anunciou no final de fevereiro um pacote de US$ 35 bi que inclui um ano de seguro para jovens desempregados e um fundo de desenvolvimento para moradia, casamentos e pequenos negócios. Já Ali Abdullah Saleh, há 32 anos no comando do Iêmen, disse no início de fevereiro que não irá buscar um novo mandato em 2013. No entanto, isso não foi o suficiente para tirar das ruas da capital Sanaa as dezenas de milhares de pessoas que exigem sua saída imediata. O Iêmen já teve uma revolução de cunho socialista em 1967, mas atualmente, apesar de ter um litoral fértil na Península Arábica, 90% de sua economia depende do petróleo, 40% da população vive com menos de US$ 2 por dia e uma expectativa de vida é de apenas 52 anos. Com organização tribal semelhante à da Líbia, o país enfrenta uma rebelião xiita ao norte e um movimento de secessão no sul. Segundo o jornal inglês The Guardian, dois dos principais líderes tribais retiraram seu apoio formal ao presidente Saleh no final de semana do dia 26 de fevereiro.
No norte da África, além da queda de Mubarak no Egito, fica cada vez mais difícil para a monarquia marroquina justificar a cruel ocupação do Saara Ocidental (ver matéria na edição 95 de Fórum) e protestos de rua por mais democracia e melhores condições de trabalho começam a despontar nas principais cidades. Na Argélia, o clima está ainda mais quente. As revoltas por causa do preço dos alimentos remontam aos protestos de 1988, que levaram à vitória eleitoral a Frente Islâmica de Salvação, em 1992, e ao golpe de Estado patrocinado pelo Ocidente que impôs a “lei de exceção”, em vigor até hoje. Em janeiro e fevereiro os argelinos voltaram às ruas para protestar contra a alta nos alimentos e pedir a deposição do presidente Abdelaziz Bouteflika, no poder desde 1999. Se por um lado ele tem enfrentado os “radicais islâmicos”, por outro as transnacionais têm reclamado da legislação que obriga as empresas estrangeiras na Argélia a serem parceiros minoritários de companhias argelinas, conforme atestaram ao Diário de Notícias empresários portugueses reunidos com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, logo após seu retorno do país africano em 28 de fevereiro. Para eles, isso “preocupa mais que a instabilidade na região”.
Outro foco de incêndios é o Bahrein, uma monarquia de minoria sunita entre o Irã, o Catar e a Arábia Saudita. Base da 5ª Frota Americana, o reino tem assistido a protestos pacíficos desde 14 de fevereiro com violenta repressão por um exército formado em parte por mercenários paquistaneses e com abundância de armas estadunidenses. De acordo com o correspondente Robert Fisk, a dinastia de mais de 200 anos do monarca Hamad al-Khalifa já ordenou pelo menos dois massacres, em 17 e 18 de fevereiro, com um número não divulgado de mortos. Ainda assim, perto de 20% do 1,2 milhão de habitantes da ilha teriam se reunido novamente nas praças da capital Manama no último dia 22. Quatro dias depois, os 18 deputados do partido xiita Wefaq renunciaram aos cargos em protesto contra os massacres. O medo é que uma eventual deposição do rei contamine a Arábia Saudita, principal parceiro árabe dos EUA na península e também dominado por uma dinastia de minoria sunita. Talvez por isso os eventos no Bahrein não estejam recebendo a mesma divulgação midiática que o conflito na Líbia.
Diferente dos países alinhados (e por que não dizer dependentes?) economicamente dos EUA como o Egito, o Bahrein e a Arábia Saudita na proteção pragmática de Israel, a Líbia era considerada até poucos anos atrás como um país terrorista, ao lado de Irã e Síria. Os negócios com a venda de petróleo abundante e barato para Europa e EUA depois da invasão do Iraque “reabilitaram” a nação governada há 42 anos por Muammar Kadafi, apesar das evidências de desrespeito aos direitos humanos. No momento em que fechamos essa matéria, a Líbia estava tecnicamente em guerra civil, com Kadafi ainda dominando a capital Trípoli e parte do norte e noroeste do país enquanto forças opositoras controlavam a segunda maior cidade, Bengasi, e boa parte dos campos de petróleo no leste. Dependendo da fonte, fala-se de centenas ou milhares de mortos. Rapidamente a ONU votou sanções contra o país e os fuzileiros navais estadunidenses se posicionaram ao largo das fronteiras. O líder cubano Fidel Castro já denunciou o “plano da Otan de ocupar a Líbia” e o preço do petróleo ultrapassou a barreira dos US$ 100.
Para o neoliberalismo e a globalização, é indispensável manter o óleo correndo sem interrupções. Mais importante até que a segurança de Israel no médio prazo. Afinal, os três países de maior resistência à crise econômica mundial na Europa (não por acaso as direitistas Itália, Alemanha e França) têm no petróleo líbio 20% a 25% de seu consumo. Um corte abrupto no fornecimento jogaria esses países rapidamente no centro da crise. Como a direita não vê alternativas ao pagamento da especulação financeira além do arrocho salarial e o corte de benefícios sociais, não é difícil prever a organização da juventude em protestos como os que têm ocorrido desde maio de 2010 na Grécia.
Com o rápido empobrecimento e a perda de direitos históricos, talvez a classe média europeia comece a compreender melhor o que tem levado jovens e adultos de países tão diferentes quanto Bahrein e Irlanda a se revoltarem. E mais, que o argumento de que os imigrantes “ilegais” são os responsáveis pela falta de empregos é simplesmente uma falácia. Quem está sugando a seiva financeira das famílias e das nações são os bancos, as transnacionais e as políticas ditadas por órgãos como o FMI. Se os povos da África e Oriente Médio podem derrubar ditaduras de décadas tomando pacificamente as praças públicas, por que os europeus não poderiam mudar com eleições governos que já não representam os interesses da população? Nós, na América do Sul, temos feito isso nos últimos dez anos.
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