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Candeia foi um dos principais expoentes de uma geração de sambistas da Portela que surge na década de 1950. Filho de Seu Candeia, portelense antigo com livre trânsito por todos os cantos de Oswaldo Cruz, Candeia (o filho) conviveu com o samba desde criança. Ele lembrava, em seus depoimentos, da tristeza que sentia em seus aniversários. Enquanto nas festas das outras crianças havia bolo e sorvete, na dele tinha era feijoada, caipirinha, partido alto, e a grande maioria dos convidados era gente adulta, amiga de seu pai. A frustração só não era maior porque quando batia 10 horas da noite e ia para cama, Candeia ficava acordado tentando entender tudo aquilo que era cantado pelos mestres portelenses e convidados.
Com essa bagagem musical, ingressou cedo na Portela, à revelia do pai. Aos 14 anos participou de seu primeiro desfile, fantasiado de mecânico. Três anos depois, em 1953, compôs com Altair Prego o samba-enredo que concorreu com o samba de Manacéia, principal compositor de samba-enredo da Portela. Candeia ganhou e seu samba levou a Portela ao campeonato daquele ano com nota dez em todos os quesitos. Ainda compôs mais cinco sambas-enredos vitoriosos na Portela.
Além de sua vida na escola de samba, Candeia começou a trabalhar na polícia. Policial durão, era severo até com os próprios sambistas e amigos. Contavam que uma prostituta, após ter sido esbofeteada por ele, o rogou uma praga. No dia seguinte, Candeia foi baleado, por causa de uma discussão de madrugada no trânsito, e nunca mais andou. Essa fatalidade, ocorrida em dezembro de 1965, mudou definitivamente seu comportamento e o rumo de sua vida.
Depois de um longo período tentando se recuperar física e psicologicamente do acidente, Candeia reinicia sua obra, na cadeira de rodas que o acompanhou até sua morte. É notável o quanto se ampliou o horizonte de seus objetivos no samba e de sua música.
Na década de 1970, o movimento de resistência à descaracterização das escolas de samba no Rio de Janeiro encontrou em Antonio Candeia Filho seu principal líder. Juntamente com Paulinho da Viola, Carlos Monte, André Motta Lima e Cláudio Pinheiro, formulou um longo documento endereçado ao presidente da Portela, Carlos Teixeira Martins, em março de 1975, em que fazia diversas críticas às mudanças ocorridas na Portela e propondo uma série de mudanças, que iniciava da seguinte forma:
“Escola de samba é Povo em sua manifestação mais autêntica! Quando se submete às influências externas, a escola deixa de representar a cultura do nosso povo. (…) Durante a década de 60, o que se viu foi a passagem de pessoas de fora, sem identificação com o samba, para dentro das escolas. O sambista, a princípio, entendeu isso como uma vitória do samba, antes desprezado e até perseguido. O sambista não notou que essas pessoas não estavam na escola para prestigiar o samba. E aí as escolas de samba começaram a mudar. Dentro da escola, o sambista passou a fazer tudo para agradar essas pessoas que chegavam. Com o tempo, o sambista acabou fazendo a mesma coisa com o desfile. (…) Consideramos que este é o momento de fazer a única evolução possível, com o pensamento voltado para a própria escola. Ou seja, corrigindo o que vem atrapalhando os desfiles da Portela, que tem confundido simples modificações com evolução. É preciso ficar claro que nem tudo que vemos pela primeira vez é novo. (…)”
E o documento continuava, discorrendo ponto a ponto sobre as mudanças necessárias para o prosseguimento da escola de samba como manifestação genuinamente popular. As propostas não foram sequer discutidas dentro da Portela.
A insatisfação dos sambistas era evidente. Mas o que fazer? Faltava uma proposta que pudesse dar forma a uma atitude coletiva e representasse os reais interesses dos sambistas e a retomada da linha evolutiva que vinha sendo traçada nas escolas antes da descaracterização. Mas essa proposta não tardou a chegar, e surgida dentro do próprio meio do samba.
Após ver ignoradas as críticas feitas ao funcionamento de sua Portela, Candeia passou a nutrir a idéia de fundar uma nova escola. Dizia ele ao jornalista seu amigo Juarez Barroso: “Uma escola em que tudo fosse feito pelo povo. As costureiras do lugar fazendo as fantasias. Não ia ter esse negócio de figurinista de fora não. As alegorias também, tudo de lá, escolhido lá. (…) Ia ser uma escola muito bonita. Sei lá, é uma idéia”.
“Estou chegando…
Venho com fé. Respeito mitos e tradições. Trago um canto negro. Busco a liberdade. Não admito moldes.
As forças contrárias são muitas. Não faz mal… Meus pés estão no chão. Tenho certeza da vitória.
Minhas portas estão abertas. Entre com cuidado. Aqui, todos podem colaborar. Ninguém pode imperar.
Teorias, deixo de lado. Dou vazão à riqueza de um mundo ideal. O amor é meu princípio. A imaginação é minha bandeira.
Não sou radical. Pretendo, apenas, salvaguardar o que resta de uma cultura. Gritarei bem alto explicando um sistema que cala vozes importantes e permite que outras totalmente alheias falem quando bem entendem. Sou franco atirador. Não almejo glórias. Faço questão de não virar academia. Tampouco palácio. Não atribua a meu nome o desgastado sufixo –ão. Nada de forjadas e mal feitas especulações literárias. Deixo os complexos temas à observação dos verdadeiros intelectuais. Eu sou povo. Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem.
Quero sair pelas ruas dos subúrbios, com minhas baianas rendadas sambando sem parar. Com minha comissão de frente digna de respeito. Intimamente ligado às minhas origens.
Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais: não me incomodem, por favor.
Sintetizo um mundo mágico.
Estou chegando…”
(Manifesto escrito por Candeia)
                                                            Candeia e Martinho da Vila
Candeia foi reunindo os sambistas para a sua idéia. Com sua capacidade de liderança, conseguiu formar as bases iniciais para fundar a nova escola. No dia 8 de dezembro de 1975 foi inaugurado o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. Suas cores: branco, dourado e lilás. Esse primeiro encontro dos sambistas se realizou num terreno baldio da Rua Pinhará, em Rocha Miranda, sede que logo foi substituída.
Já em janeiro de 1976 a escola se mudou para Coelho Neto, onde fez sua sede no Esporte Clube Vega, que estava em ruínas e fizera um acordo com a diretoria da Quilombo possibilitando a utilização do clube pelos “quilombolas”. Uma grande festa foi feita para inaugurar a nova sede. Lá estavam sambistas para se incorporar à Quilombo ou somente prestar seu apoio. A satisfação era geral pela concretização do espaço onde o sambista pudesse desenvolver livremente sua arte. Chegavam para se juntar a Candeia gente como Elton Medeiros, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Nei Lopes, Wilson Moreira, Guilherme de Brito, Monarco, Casquinha e outros integrantes da Velha Guarda da Portela, Mauro Duarte, Clementina de Jesus, dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Clara Nunes, Nelson Sargento e outros.
Juarez Barroso, jornalista do Jornal do Brasil na época, bastante ligado à música popular e amigo de Candeia também aderiu à Quilombo. Na inauguração da nova escola, assim iniciava uma matéria de página inteira chamada Quilombo, nasce uma nova escola:
“As escolas de samba agigantaram-se, deformaram-se à medida que se transformaram (ou pretenderam se transformar) em shows para turistas. O tema é polêmico, tratado como sempre em tom passional. Deformação ou evolução? Seria possível o retorno à pureza, ao comunitarismo dos anos 30, quando essas escolas se consolidaram? O sambista Candeia, liderando outros sambistas descontentes com a situação, prefere responder de modo objetivo. E responde com a fundação de uma nova escola de samba, Quilombos, escola que terá sede em Rocha Miranda e irá para a Avenida mostrando como era e como deve ser o samba.”
Como explicava Candeia, mais do que uma escola de samba, a Quilombo seria uma escola de sambistas, que pudesse servir de alerta às outras, assim como de referência. E nenhum de seus integrantes precisava abandonar as escolas a que pertenciam, a Quilombo não exigia exclusividade. Nei Lopes, já em 1980 no programa da TVE Tudo é música especial sobre escolas de samba – apresentado por José Ramos Tinhorão –, sintetizava: “A maioria das pessoas que estão aqui, como eu, o Martinho [da Vila], o Wilson [Moreira], a gente não deixou nossa escola de origem. A gente está pensando inclusive em levar a filosofia do Quilombo para nossas escolas de origem”.
Outro fato importante era o de que a Quilombo não era somente uma escola de samba. Candeia não cansava de explicar: “É Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba. Quilombo é jongo, é capoeira, é lundu, é maracatu”. A Quilombo se propunha a resgatar a cultura negra, a cultura dos morros e subúrbios do Rio de Janeiro, a cultura trazida, transformada e recriada pelos negros do Brasil, antepassados daqueles sambistas que ali se reuniam. Havia vários grupos de danças de origem negra (jongo, maracatu, maculelê, caxambu, afoxé, samba de lenço, samba de caboclo, lundu e capoeira). Chamaram para o grupo de jongo a vovó Teresa de 113 anos, mãe de Mestre Fuleiro, que morava no Morro da Serrinha, em Madureira. A sede da Quilombo era utilizada também para encontros culturais, como as conferências sobre a contribuição negra na formação cultural do Brasil, que chegava a reunir duzentas pessoas, além de atividades que buscavam integrar ainda mais a comunidade e a escola.
Numa matéria publicada na Última Hora/Revista, Candeia e Elton Medeiros definiam os objetivos da escola:
“1. Desenvolver um centro de pesquisas de arte negra, enfatizando sua contribuição à formação da cultura brasileira.
2. Lutar pela preservação das tradições fundamentais sem as quais não se pode desenvolver qualquer atividade criativa popular.
3. Afastar elementos inescrupulosos que, em nome do desenvolvimento intelectual, apropriam-se de heranças alheias, deturpando a pura expressão das escolas de samba e as transformando em rentáveis peças folclóricas.
4. Atrair os verdadeiros representantes e estudiosos da cultura brasileira, destacando a importância do elemento negro no seu contexto.
5. Organizar uma escola de samba onde seus compositores, ainda não corrompidos ‘pela evolução’ imposta pelo sistema, possam cantar seus sambas, sem prévias imposições. Uma escola que sirva de teto a todos os sambistas, negros e brancos, irmanados em defesa do autêntico ritmo brasileiro”.
Em 1976, a escola ainda não tinha estrutura para desfilar. Mas um animado bloco sem fantasia pôde ser visto no carnaval pelas ruas do subúrbio de Coelho Neto e Acari. Já em 1977, mesmo com muitas dificuldades, a escola desfilou nas ruas do subúrbio e fechou o carnaval na Presidente Vargas no desfile das campeãs. Sua presença foi a grande novidade do carnaval e um grande sucesso segundo a imprensa. A Quilombo não se preocupava em filiar-se a entidades nem em participar de desfiles oficiais. Também não disputava campeonato. Aceitava o convite da Riotur para se apresentar na Avenida, mas não deixava de desfilar também nas ruas do subúrbio. E foi assim que em 1978 e 1979, com os enredos Ao povo em forma de arte e Noventa anos de Abolição, respectivamente, ambos os sambas compostos pela dupla Wilson Moreira e Nei Lopes, a Quilombo mais uma vez apresentou um desfile da maior qualidade e comprovava que as tais “inovações” no samba não eram necessárias para se fazer um belo carnaval. Depois do carnaval de 1978, o dinheiro que sobrou do desfile, sem ostentação, foi utilizado para comprar uniformes escolares para as crianças pobres do bairro onde ficava a sede da escola.
Em 16 de novembro de 1978, Candeia morria no Hospital Cardoso Fontes, por causa de crise renal-hepática. Sua morte foi um baque na luta intensa em defesa das raízes das escolas e do samba. Houve um grande vazio na comunidade “quilombola” pois Candeia era o principal líder e organizador. O contrato com o Esporte Clube Vega foi rompido e a escola ficou sem sede. Por iniciativa de várias pessoas a sede pode voltar a existir na Fazenda Botafogo, em Acari. A escola continuou existindo na década de 80, embora com menor destaque.
O legado de Candeia permanece cada vez mais vivo, na lembrança das ruas, nas rodas de samba, nas regravações de suas músicas e em espetáculos como “É samba na veia, é Candeia”.
Para ouvir um pouco de sua obra genial, sugerimos começar por Axé! Gente Amiga do Samba (1978), disco em que Candeia reúne sambistas da Velha Guarda da Portela, além de Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara para fazer uma das obras-primas do samba brasileiro. Outro registro importante é o documentário Partido Alto, de Leon Hirzman, curta-metragem finalizado em 1982, com cenas raras das rodas de samba comandadas por Candeia em sua cadeira de rodas.
Recentemente, o grupo paulista Terreiro Grande se uniu a Cristina Buarque para uma emocionante homenagem em forma de shows (já realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro), trazendo a obra do mestre.
Outra importante homenagem a Candeia foi o premiado espetáculo É samba na veia, é Candeia. O musical, encenado inicialmente no CCBB, onde venceu concurso de dramaturgia Seleção Brasil em Cena 2007 concorrendo com cerca de 300 trabalhos inscritos, vem colecionando prêmios, reconhecimento e carinho do público (escolhido o melhor espetáculo de 2008 pelos leitores do JB). Trouxe a vida e as principais composições de Candeia também em memoráveis apresentações no Teatro Casa Grande e Sesc Tijuca (no Rio de Janeiro).
É samba na veia, é Candeia
Fontes: ABRIL CULTURAL. Candeia / Elton Medeiros. Nova História da Música Popular Brasileira. Abril Cultural, 1978
AQUINO, João de et al. Eterna Chama. Candeia 20 anos de memória. Rio de Janeiro: Perfil Musical, 1998 (encarte)
ARAGÃO, Diana. Quilombo, uma escola de sambistas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 jan 1978
BARROSO, Juarez. Quilombos, nasce uma escola de samba. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 dez 1975
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO/Jorge Zahar Ed., 1996
TINHORÃO, José Ramos. Tudo é música: samba se aprende na escola. Especial Quilombo. Rio de Janeiro: TVE, 1980 (Programa de TV)
VARGENS, João Baptista M. Candeia: luz da inspiração. Rio Bonito (RJ): Almadena, 2008 (3ª Edição)

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