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“Para ser grande sê inteiro:Nada teu exagera ou exclui;Sê todo em cada coisa,Põe quanto és no mínimo que fazes.Assim em cada lago a lua todaBrilha, porque alta vive”.Fernando Pessoa (Odes de Ricardo Reis)
Os deslocamentos humanos de massa costumam fragmentar não apenas o núcleo familiar ou de parentesco. Eles fragmentam também, por uma parte, o desejo de um emprego estável com o sonho a ele associado e, por outra, o trabalho feito de serviços eventuais, de bicos, suado gota a gota. Evidencia-se, nada mais nada menos, o divórcio entre trabalho e emprego.
1. O ser e a função
O poema do grande poeta português, que serve de epígrafe a estes parágrafos, soa bem apropriado para descrever o sentimento do ser humano, seja na sociedade moderna ou pós-moderna, seja no universo urbano ou no desenraizamento provocado pela migração. Em lugar do ser prevalece a função: o papel ou os papéis que desempenhamos na sociedade. Vale o aparentar, o fazer, o ter, o comprar, o vestir, o portar-se… Enfim, a pessoa se mede pelo que é capaz de produzir e consumir. Boa ou má perfomance, eis o termo para o sucesso ou insucesso pessoal. A quantidade e o cálculo substituem a qualidade. Tempo e espaço são matematizados, vale dizer, mercantilizados. Segundos e milímetros equivalem a centavos, horas e metros tornam-se moeda corrente. Tudo se reduz a dinheiro, o grande denominador comum, que permite a troca de uma coisa por outra. E também, evidentemente, de um trabalhador por outro, dependendo da capacidade de produção. O motor do lucro e da acumulação de capital move desejos e interesses, lutas e sonhos, destinos e existências.
O ser se esconde e se neutraliza atrás da função, da profissão, da aparência ou de uma potencialidade adormecida. Em termos metafóricos, é como se cada um, em seu armário pessoal, ao lado das variadas peças do próprio vestuário, guardasse uma série de máscaras para as diferentes ocasiões de seu desempenho. Há uma para o trabalho, outra para o bar e os amigos, uma terceira para a família, outra destinada aos momentos festivos, e assim por diante. Até certo ponto, isso é comum e bem humano. Ninguém é obrigado a desnudar-se diante dos estranhos. Todos nós, de uma forma ou de outra, sempre andamos com algum tipo de máscara. Semelhante comportamento constitui uma defesa natural contra a curiosidade alheia. Alma alguma expõe sua nudez em praça pública, à curiosidade alheia.
O problema começa quando não conseguimos nos reconhecer em meio a tantos desafios, a tantas mudanças e a tantas funções a que, diariamente, somos chamados. Ou seja, quando perdemos o eixo da própria existência. Tentemos imaginar uma roda em que os raios não convergem para o centro. Fatalmente a roda se quebra, se fragmenta. Aí está o ser fragmentado. Não se trata daquele que desempenha várias tarefas, nem tampouco daquele que desempenha tarefas diferenciadas. Trata-se daquele que, em suas múltiplas atividades, não possui um foco organizador, um eixo que reúna os raios de seu intenso agir. Sabemos que não poucos trabalhadores, especialmente em níveis degradantes, precários ou de escravidão, morrem pelo excesso de trabalho. Entretanto, excetuando esses extremos, o que nos estressa e mata em geral não é o trabalho em si, mas a dispersão das distintas tarefas. Sentimo-nos puxados em direções opostas e nos fragmentamos, sem uma realização mais profunda que oriente nossas energias rumo a um horizonte de sentido.
2. Migração e divórcio entre trabalho e emprego
No caso da população migrante, a fragmentação ganha uma carga mais pungente. Deixar sua família e cortar as raízes mergulhadas, há décadas, na terra em que nasceu e enterrou seus ancestrais é algo doloroso, quando não traumático. O trabalhador, nesse processo, rompe com laços tradicionais e “até mesmo com as vantagens do grupo primário de vizinhança”, diz Lewis Mumford em sua obra clássica A cidade na História. Por mais que tente recompor tais laços nos lugares de destino, o anonimato, a solidão, o isolamento e a saudade costumam seus companheiros de vida e trabalho. “É aí que realmente vamos encontrar a Multidão solitária”, continua o mesmo autor, referindo-se ao livro de David Riesman. Esse esgarçamento do tecido familiar, de parentesco ou de compadrio se acelera nas grandes cidades ou nas megalópoles, de nossa civilização metropolitana. Não deixa de se manifestar, também, i com igual intensidade, nos acampamentos de refugiados, nas casas de migrantes, no trabalho dos marítimos ou caminhoneiros e nos alojamentos de trabalhadores temporários, por exemplo. Sempre há o sonho de voltar a casa, é bem verdade, mas as condições de abrigo e de serviços duros e mal pagos contribuem para aumentar o peso da distância e a ausência de relações de afeto.
De fato, a migração temporária representa um dos cenários mais emblemáticos do que se poderia chamar de divórcio entre trabalho e emprego. Aqui entendemos por emprego um contrato entre as duas partes que dê um mínimo de estabilidade. Em outras palavras, um emprego no sentido pleno da palavra permite ao trabalhador planejar seu futuro, quer em termos de casamento e família, quer em termos de adquirir um terreno e construir sua casa. Emprego estável é sinônimo de segurança quanto à vida. Já o emprego temporário, seja ele vinculado à agroindústria ou agronegócio, à construção civil ou ao trabalho doméstico em geral, dificilmente permite sonhar com um futuro mais promissor. No máximo garante uns trocados para pequenas melhorias na casa ou na saúde da família, para pagamento de dívidas ou para comprar uma moto, por exemplo. Nesse caso, trabalho não significa propriamente emprego. Torna-se evidente o divórcio entre esses dois conceitos. Vale o mesmo, aliás, para todos os trabalhadores que, num quadro de desemprego, vivem de eventuais subempregos ou de bicos. Procuram emprego e se deparam com trabalho, e este em tais ocasiões quase sempre é redobrado. O subemprego, os serviços de bico ou temporários que, via de regra, submetem homens e mulheres (quando não crianças) a condições precárias é como que o símbolo dessa separação entre trabalho e emprego.
E o migrante, sujeito em geral aos serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados, evidencia o divórcio entre um emprego duradouro e o trabalho sempre instável, inseguro, degradante e precário. A agricultura, em especial, conta com essa mão-de-obra temporária, na medida em que ela serve à sazonalidade do plantio e da colheita. Constata-se isso facilmente no corte de cana, na colheita da laranja e do café… Enfim nas safras agrícolas em geral. O mesmo vale para as grandes obras de construção civil, como também para os serviços domésticos ou para os bastidores do turismo: hotéis, restaurantes, serviço de camelô nas praias, etc. Igualmente o comércio sazonal, com piques em determinadas datas do ano (Natal, dia da criança, dia das mães e dos pais) costuma contar com esse tipo de empregado a varejo. Em todos esses casos, o trabalhador vive na corda bamba: por um lado, vê-se submetido à superexploração de suas potencialidades de trabalho, por outro, o emprego não lhe confere fôlego largo para programar um futuro estável para a família.
3. Fragmentação no Mundo do trabalho
Mas o divórcio entre trabalho e emprego não atinge somente o trabalhador migrante, imigrante ou temporário. Embora estes o sintam em primeiro lugar e com maior evidência, tal divórcio ocorre também na classe trabalhadora em geral. É próprio de cenários de crise e forte desemprego. Termos como globalização da economia, terceirização, flexibilização, entre outros, tendem a quebrar a espinha dorsal da organização dos trabalhadores e do sindicalismo em geral. Debilitados e fragilizados, eles passam a conviver com situações cada vez mais precárias e instáveis. Resulta que o emprego como garantia sólida para a ascensão social dá lugar a uma série de trabalhos eventuais e/ou bicos. Chega-se assim a uma proporção perversa: quanto maior o gasto de energias, menor a possibilidade de prever e remediar a vida futura. Não é incomum que esse divórcio acarrete outros tipos de separação, tais como, por exemplo, entre amor e sexo, entre matrimônio e amor, tempo livre e lazer; entre existência real e virtual, entre o ser pessoa e função social. Na impossibilidade de organizar a vida e o futuro, ambos se quebram, escorrem por entre os dedos.
Sendo obrigado a aceitar o que vem pela frente, dadas as condições desfavoráveis, a fragmentação entre trabalho e emprego, de um lado, e realização pessoal e familiar, por outro, fragmenta igualmente a própria pessoa. A precariedade no mundo do trabalho leva cada trabalhador a uma espécie de “salve-se quem puder”.Vive-se de oportunidades eventuais, de respostas imediatas para problemas igualmente imediatos. Vale insistir, o trabalhador vê-se mutilado na capacidade de programar, a largo prazo, sua vida e a de sua família. Incapacitado de encontrar um fio condutor para a própria existência, esta se rompe, converte-se em cacos, pedaços isolados. A instabilidade no emprego estilhaça qualquer projeto de vida. Quando o trabalho se desvincula de um contrato sólido, estável e de relativa duração, também o ser humano se desvincula de suas funções. Enquanto o homem e a mulher, por seu esforço, sonham alcançar novo patamar, a realidade se revela adversa, quebrada, fragmentada.
Divórcio semelhante sofre o emprego agrícola e a terra. Por trabalhar na propriedade que não lhe pertence, os pés do lavrador estão ligados ao chão, mas a cabeça encontra-se em outro lugar. Coisa comum na juventude rural, a qual, ainda ligada ao campo, sonha com os apelos, a sedução e as luzes da cidade. A falta de uma política agrária e agrícola, associada à falta de serviços de educação e escola, faz com que não poucos trabalhadores rurais se encontrem fisicamente vinculados à terra, mas com perspectivas de fugir em direção a outra forma de vida. É dessa separação entre terra e futuro, ou entre trabalho e emprego, que nasce muitas vezes o desejo de alcançar os países centrais, particularmente Estados Unidos, Europa e Japão. Enquanto a terra e o trabalho sobre ela representam uma instabilidade recorrente, o emprego num país de primeiro mundo, ou na cidade grande, se apresenta como um trampolim para subir na vida. O sonho da mobilidade social desencadeia a mobilidade territorial, mas pode resultar no pesadelo de trabalho pesado sem emprego fixo e estável.
Fonte:www.adital.com.br
Alfredo J Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais

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