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O Brasil começa a viver o drama de países ricos. Com maior consumo de alimentos industrializados ricos em sódio, açúcares e gorduras, mais da metade da população apresenta sobrepeso ou é obesa. As classes C e D são as maiores vítimas.
Uma epidemia surge no Brasil e o Sistema Único de Saúde não está preparado para atender todas as suas vítimas. O sobrepeso e a obesidade, somados, já atingem cerca de 60% da população adulta brasileira. Levantamento do Ministério da Saúde mostra que 48,1% dos adultos estão acima do peso e 15% são obesos. Os dados são da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2010, para a qual foram entrevistadas 54.339 pessoas em todas as capitais do país. Desde 2006, quando a Vigitel começou a ser realizada anualmente, os números vêm crescendo. Há cinco anos, 42,7% da população estava com excesso de peso e 11,4%, com obesidade. Em 1975, apenas 2,8% dos homens e 7,8% das mulheres eram obesos, segundo o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef) realizado naquele ano.
Enquanto parte do Brasil ainda tem fome, outra reproduz hábitos alimentares não saudáveis, provocando uma epidemia comum em países ricos. O Brasil ocupa a 19ª posição no ranking mundial entre os homens, e está em 15º quando se trata de mulheres, segundo pesquisa da revista médica americana The Lancet. Nos Estados Unidos, país líder mundial no ranking de obesidade, 25% da população é obesa. “Infelizmente conseguimos copiar o que eles têm de pior: o padrão alimentar”, diz a conselheira do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e professora da Universidade de Brasília (UnB), Elisabetta Recine.
Mas, tanto no caso do excesso, como da escassez, quem tem menos renda é o mais afetado. Se o Brasil já apresenta esse grande contingente de pessoas acima do peso, o índice é maior entre as classes C e D. “Quando consideramos a faixa de renda e de escolaridade, temos mais obesos entre os mais pobres e menos escolarizados”, afirmou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em entrevista concedida a blogueiros progressistas, em 21 de maio. Uma série de fatores faz com que as pessoas, cujo gasto com alimentação até pouco tempo pesava no orçamento, hoje estejam no grupo de risco de desenvolverem as chamadas doenças crônicas não transmissíveis, tais como hipertensão, diabetes e cardiovasculares.
O aumento do consumo de alimentos industrializados ricos em sódio, açúcares e gorduras é apontado como o principal elemento causador dessa situação. Além disso, o sedentarismo é cada vez maior entre a população, principalmente de baixa renda. “A pesquisa Vigitel mostrou que 30% das pessoas com mais de 12 anos de escolaridade fazem atividade física em seu tempo de lazer. Com menos de oito anos de escolaridade, só 14% praticam alguma atividade”, diz Padilha. “Isso porque, às vezes, a pessoa não vive num lugar seguro para fazer atividade física e não tem dinheiro para pagar academia.”
Por outro lado, para atender a chamada “nova classe média”, que em 2014 deve ser 57% da população entre 18 e 69 anos, com acesso a alimentos industrializados, o Sistema Único de Saúde (SUS) terá que se reorganizar. “Mas não é só o sistema de saúde, a sociedade também tem que se organizar, tem que ter ação da escola relacionada a isso, é preciso associar esporte com ação de lazer”, alertou o ministro da Saúde. Segundo Padilha, o Ministério convocou toda a indústria de alimentos para assinar um acordo para que a concentração de sódio seja reduzida. “O acordo visa à redução imediata de 15% em média, chegando até 30% naqueles produtos com maior concentração de sódio. No segundo semestre, será cobrada a redução de gorduras, ou seja, tem que ter o compromisso da indústria com isso”, diz ele.
Para Elisabetta, é importante que a indústria altere a composição dos alimentos para toda a população, não apenas para nichos de mercado. Hoje as classes A e B, que dispõem de mais recursos e acesso à informação compram alimentos diet, light, ricos em fibras, sem gorduras trans, orgânicos, etc. Segundo ela, com o aumento de renda, as classes C e D estão consumindo alimentos supercalóricos, com baixa qualidade nutricional. “Temos que pensar alternativas de deixar os alimentos saudáveis mais acessíveis”, diz. “Esta é uma vantagem do alimento industrializado, ele é relativamente muito barato, sacia com muito pouco recurso.”
A indústria já tem estratégias de marketing para atingir esse novo mercado consumidor. A Nestlé, por exemplo, tem um programa de revenda porta a porta. Ele é destinado a mulheres que passam com um carrinho vendendo kits com produtos da empresa. Elas ganham até um salário mínimo e meio.
Além do ato individual
“Os fatores ligados ao acesso à propaganda e a informações, além da necessidade de alimentação rápida, são determinantes no estado que estamos: um quadro de obesidade crescente e preocupante”, afirma a presidente do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Rosane Nascimento. Para ela, os acordos com a indústria são muito tímidos: “Falta muito para a indústria ser entendida como uma real parceira. Ainda predomina a questão econômica acima de todos os outros interesses, não há uma preocupação com a saúde pública. A indústria vende alimentos da mesma forma que vende um sapato, ou qualquer coisa. Sem medir as consequências do que o alimento pode causar à população consumidora”.
Grandes cadeias de fast food, segundo Rosane, passaram a incluir em seus cardápios opções de salada e outros alimentos mais saudáveis, dando a impressão de que a responsabilidade é só do consumidor. “O indivíduo tem um papel, mas o ambiente tem que colaborar, precisa haver um ambiente saudável”, explica Elisabetta. Para ela, quando uma pessoa vai ao supermercado e escolhe algum produto alimentício não se trata de um ato tão individual assim, já que as pessoas são sensíveis diante da pressão da publicidade. “Como a culpa pode ser individual se o indivíduo é bombardeado por propaganda?”, questiona.
Tanto o Consea quanto o CFN, e diversas outras entidades da sociedade civil, defendem a regulação da publicidade de alimentos, especialmente para o público infantil. Seria uma forma de intervir na construção de um ambiente mais saudável para que o indivíduo decida o que deve comer. “As classes C e D se viram diante de uma nova realidade e não foram preparadas para fazer boas escolhas. Precisamos de medidas regulatórias e o governo não pode se omitir”, afirma Rosane, que sugere ainda campanhas educativas.
“A obesidade é causada por uma questão multifatorial. É uma questão dos hábitos, de sedentarismo, genética, mas também do impacto da publicidade de alimentos”, avalia Isabela Henriques, coordenadora do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana. Segundo ela, é preciso intervir nessas três frentes. “O aumento da obesidade está numa curva ascendente; se nada for feito, a tendência é aumentar.”
Mas, como mostrou a experiência da Resolução 24/10, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a regulamentação enfrenta pressões contrárias. “É um cabo de força complicado, não só no Brasil, mas globalmente”, avalia Elisabetta. A Resolução 24 previa que a indústria teria que colocar alertas nas embalagens com informações sobre os eventuais riscos que o consumo em excesso dos alimentos poderia causar. Mas a indústria alimentícia se juntou e conseguiu, por meio de liminar, anular a resolução, cujo conteúdo ainda é bem mais tímido do que países como a Inglaterra estão fazendo. Lá, uma lei de 2006 proibiu propagandas de alimentos com alto teor de sódio, açúcares e gorduras em programas televisivos destinados à faixa etária abaixo de 16 anos. O parlamento do Chile aprovou, em 21 de abril, um projeto de lei que cria regras para a publicidade de alimentos, proíbe para crianças menores de 14 anos, permitindo a veiculação só após as 22 horas. Nos Estados Unidos, foram lançadas diretrizes no início de maio também com o objetivo de restringir a publicidade destinada ao público infantil.
Direito a alimentação adequada
Para 79% dos pais, a publicidade de alimentos não saudáveis prejudica os hábitos alimentares das crianças. Esse foi o resultado de pesquisa do Instituto Datafolha, encomendada pelo Instituto Alana. Foram entrevistadas 596 pessoas, pais e mães de crianças de até 11 anos. Segundo o levantamento, 78% dos entrevistados acreditam que a publicidade desses produtos levam as crianças a “amolarem” seus pais para que comprem produtos anunciados, e 76% disseram que os comerciais dificultam o esforço de educar os filhos a se alimentarem de forma mais saudável.
Segundo Isabela, a população é lesada por uma publicidade enganosa, que atinge principalmente o público infantil. Além de a criança não ter discernimento para escolher, seu paladar está sendo formado por produtos que contêm realçadores de sabor e muitas vezes muito açúcar. “A indústria precisa assumir o impacto que gera na saúde pública”, afirma.
O Instituto desenvolve uma série de ações no Espaço Alana, no Jardim Pantanal, na periferia de São Paulo, Estado de São Paulo. Segundo a nutricionista do Instituto, Micheli Rangel Albuquerque, em 2010, 33,7% das 240 crianças atendidas pela creche apresentavam obesidade. “Apesar de oferecermos uma alimentação balanceada, na casa dessas crianças elas não têm acesso a frutas e outros alimentos saudáveis”, explica.
“Projetamos uma situação absolutamente descontrolada. Não haverá recursos para tratar pessoas que ficarão ou já estão doentes. São doenças que começam de forma silenciosa e trazem consequências sérias: perda da qualidade de vida, da capacidade de trabalho do indivíduo. Há um custo alto”, diz Elisabetta. Ela alerta que, quando se discute a regulamentação, “há um mito de que se quer acabar com a indústria ou cercear a liberdade de expressão”. “Certamente a indústria de alimentos trouxe ganhos. Mas hoje temos uma situação onde ela oferece produtos num cenário sem regulamentação, sendo que antes não tínhamos consciência e nem vivíamos os impactos que essas doenças trazem”.
Elisabetta explica que o direito à alimentação, incluído no ano passado entre os direitos sociais na Constituição, prevê não só a garantia de um país livre da fome e desnutrição, mas também de alimentação adequada. “Não podemos acabar com a fome e gerar doenças”, diz. “Hoje qualquer criança está tendo violado seu direito a alimentação adequada, pois há um conjunto de informações distorcidas formando seus hábitos alimentares.”
* Publicado originalmente pela Revista Fórum, edição 99, de junho de 2011.
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