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Em Londres, estamos perante a denúncia violenta de modelo que tem recursos para resgatar bancos, mas não os tem para uma juventude sem esperança
Os motins na Inglaterra são um perturbador sinal dos tempos. Está a ser gerado nas sociedades um combustível altamente inflamável que flui nos subterrâneos da vida coletiva sem que se dê conta.
Esse combustível é constituído pela mistura de quatro componentes: a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a mercantilização da vida individual e coletiva, a prática do racismo em nome da tolerância, o sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do roubo “legal” dos cidadãos. Cada um dos componentes tem uma contradição interna.
Quando elas se sobrepõem, qualquer incidente pode provocar uma explosão de proporções inimagináveis. Com o neoliberalismo, o aumento da desigualdade social deixou de ser um problema para passar a ser a solução.
A ostentação dos ricos transformou-se em prova do êxito de um modelo social que só deixa na miséria a maioria dos cidadãos porque estes supostamente não se esforçam o suficiente para terem êxito.
Isso só foi possível com a conversão do individualismo em valor absoluto, o qual, contraditoriamente, só pode ser vivido como utopia da igualdade, da possibilidade de todos dispensarem por igual a solidariedade social, quer como agentes dela, quer como seus beneficiários.
Para o indivíduo assim construído, a desigualdade só é um problema quando lhe é adversa; quando isso sucede, nunca é reconhecida como merecida. Por outro lado, na sociedade de consumo, os objetos de consumo deixam de satisfazer necessidades para as criar incessantemente, e o investimento pessoal neles é tão intenso quando se têm como quando não se têm.
Entre acreditar que o dinheiro medeia tudo e acreditar que tudo pode ser feito para obtê-lo vai um passo muito curto. Os poderosos dão esse passo todos os dias sem que nada lhes aconteça. Os despossuídos, que pensam que podem fazer o mesmo, acabam nas prisões.
Os distúrbios na Inglaterra começaram com uma dimensão racial. São afloramentos da sociabilidade colonial que continua a dominar as nossas sociedades, muito tempo depois de terminar o colonialismo político. Um jovem negro das nossas cidades vive cotidianamente uma suspeição social que existe independentemente do que ele ou ela seja ou faça.
Tal suspeição é tanto mais virulenta quando ocorre numa sociedade distraída pelas políticas oficiais da luta contra a discriminação e pela fachada do multiculturalismo.
O que há de comum entre os distúrbios da Inglaterra e a destruição do bem-estar dos cidadãos provocada pelas políticas de austeridade comandadas por mercados financeiros? São sinais dos limites extremos da ordem democrática.
Os jovens amotinados são criminosos, mas não estamos perante uma “criminalidade pura e simples”, como afirmou o primeiro-ministro David Cameron.
Estamos perante uma denúncia política violenta de um modelo social e político que tem recursos para resgatar bancos e não os tem para resgatar a juventude de uma vida sem esperança, do pesadelo de uma educação cada vez mais cara e mais irrelevante, dados o aumento do desemprego e o completo abandono em comunidades que as políticas públicas antissociais transformaram em campos de treino da raiva, da anomia e da revolta.
Entre o poder neoliberal instalado e os amotinados urbanos há uma simetria assustadora. A indiferença social, a arrogância, a distribuição injusta dos sacrifícios estão a semear o caos, a violência e o medo, e os semeadores dirão amanhã, genuinamente ofendidos, que o que semearam nada tem a ver com o caos, a violência e o medo instalados nas ruas das nossas cidades.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, sociólogo português, é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de “Para uma Revolução Democrática da Justiça” (Cortez, 2007).
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