Segundo a última estimativa da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), órgão que lidera os esforços internacionais de erradicação da fome e da insegurança alimentar, existem 925 milhões de pessoas no mundo que vão para a cama todas as noites de barriga vazia. Isto significa que em um planeta com sete bilhões de “bocas”, uma em cada sete pessoas não tem o que comer!
A notícia, apesar de indigesta, não é nova. Todos os anos as mídias nos lembram que centenas de milhares de humanos, incluindo crianças, encontram-se em frágeis estados físicos, moribundos ou próximos à morte.
Problema sem solução? Não. A fome não esconde sequer o vergonhoso status de ser o maior problema solucionável que o mundo enfrenta hoje. O que se passa, então? Por que a fome existe? A quem ela interessa? E, se há solução, como chegar até lá?
Segundo Darana Souza*, pesquisadora do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), a fome persiste não somente porque existem aqueles que de alguma forma ganham com ela, mas em grande medida pelo fato de não se fazer o bastante contra ela. “A necessária prioridade que a questão merece, acompanhada da devida mobilização de recursos financeiros e humanos, é insuficiente em diversos países, tanto na arena internacional como na esfera nacional. “Utilizando uma fórmula caricatural, eu diria que a fome persiste tanto por insuficiência de ‘mocinhos’ como pela presença de ‘vilões’”, aponta.
Mestre em Desenvolvimento Sustentável e Agricultura e bacharel em Ciências Sociais, a pesquisadora concedeu uma entrevista, por email, para o Mercado Ético, onde aprofunda algumas questões fundamentais para se entender as causas desse problema e, também, onde apresenta o apoio à capacidade produtiva da agricultura familiar como uma condição sine qua non para resolvê-lo.
Confira abaixo.
Mercado Ético – Como é o cenário atual da produção e distribuição de alimentos no mundo? Quem são os principais players do mercado?
Darana Souza – A produção atual de alimentos é mais do que suficiente para alimentar a população mundial. Ela segue aumentando, com 0,8% de crescimento em 2010 segundo a FAO (FAO 2011, State of Food and Agriculture 2010-2011, Rome, FAO). Diferentes regiões do planeta são grandes produtoras, a exemplo da China, Estados Unidos, União Europeia e Brasil.
A distribuição desta produção é bastante internacionalizada para uma série de produtos, caracterizados como commodities, com grande impacto sobre a segurança alimentar das populações, já que divide o mundo entre países exportadores e países importadores de alimentos. Entre os importadores está a grande maioria das nações com maior número e prevalência de pessoas que sofrem de fome crônica no mundo, notadamente na Ásia e África subsaariana (FAO 2002-2002, Net Food Traders, http://faostat.fao.org/site/342/default.aspx).
No que se refere a grandes players, a ação dos governos, particularmente dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), se colocou durante muitos anos como o grande foco das discussões referentes ao mercado agrícola internacional e marca a Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). Ela se refere ao uso de mecanismos de proteção de mercado e de subsídios à produção agrícola pelo Estado, que permitem a venda de gêneros alimentícios oriundos destas regiões a preços com os quais os países em desenvolvimento não conseguem competir.
A partir principalmente da crise da alta dos preços de alimentos em 2007-2008, novos elementos surgem no debate, revelando a ação de importantes players que, na verdade, vêm ganhando força desde a desregulação do mercado de commodities nos anos 1990. São bancos e outros agentes financeiros internacionais que especulam no mercado futuro de alimentos e contribuem para a volatilidade dos preços que hoje marcam o cenário mundial (Unctad 2008, Adressing the World Food Crisis, Rome, UN; Friends of the Earth Europe 2012, Farming Money: How European and private finance profit from food speculation and land grabs, Brussels, Friends of the Earth Europe).
ME – Como o Brasil se encontra diante desse macrocenário?
DS – O Brasil tem uma posição bastante privilegiada. É um grande exportador de produtos agrícolas e autossuficiente na maior parte dos alimentos consumidos pelos brasileiros, com exceção importante do trigo, importado majoritariamente da Argentina. Destaca-se o valor da agricultura familiar neste cenário, responsável maior pela produção de alimentos consumidos no âmbito nacional, como 87% da mandioca, 70% do feijão e 58% do leite (IBGE 2009, Censo Agropecuário 2006, Rio de Janeiro, IBGE).
ME – Como o atual modelo agrícola mundial afeta a soberania alimentar dos países pobres? Como a população brasileira é afetada pelas atuais regras?
DS – Se considerarmos o conceito de soberania alimentar utilizado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o qual se refere ao direito dos povos de definir suas próprias estratégias de produção, distribuição e consumo de alimentos (Consea 2009, Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira, Brasília, Presidência da República), algumas questões merecem ser levantadas. Os subsídios usados pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), antes mencionados, ajudam a inviabilizar a produção de países pobres, que, aliás, são geralmente tradicionais produtores agrícolas. Este fato contribui para que eles sejam cada vez maiores importadores de alimentos e consumidores de commodities.
Vale acrescentar que o comércio mundial de insumos agrícolas, a exemplo de sementes modificadas, fertilizantes e pesticidas, representa modelos agrícolas específicos, pautados na intensificação da produção. O Brasil está amplamente inserido neste cenário; somos os maiores consumidores de agroquímicos e o segundo maior produtor de organismos geneticamente modificados (OGM) (Chmielewska e Souza 2011, The Food Security Policy Context in Brazil, IPC-IG Country Study 22, Brasília, IPC-IG).
ME – O direito à alimentação é um direito fundamental, um direito humano. Ainda assim, todos os anos acompanhamos notícias de que centenas de milhares de pessoas, inclusive crianças, são levadas à indigna condição de famintos. Ainda que complexo, o problema da fome pode ser resolvido. Mas se há solução para a questão, por que ela ainda existe? A quem ela interessa?
DS – Certamente há soluções, tanto para as crises alimentares que se repetem ano após ano e que são em geral amplamente divulgadas pela imprensa, quanto para a fome crônica que continuamente incapacita e mata centenas de milhares de pessoas de forma mais silenciosa. Mas as soluções não são simples. Fome e pobreza estão estruturalmente muito relacionadas, já que o problema em nível mundial é muito mais uma questão de falta de acesso a alimentos – em geral econômico – do que de insuficiência destes.
Existem de fato aqueles cuja atuação contribui para criar e manter mecanismos econômicos, sociais e até militares que sustentam a fome. Entre eles estão governos e agentes financeiros, como comentado anteriormente, além de empresas de diversos ramos e mesmo grupos armados no caso de países em conflito.
A meu ver, no entanto, a fome persiste não somente porque existem aqueles que de alguma forma ganham com ela, mas em grande medida pelo fato de não se fazer o bastante contra ela. A necessária prioridade que a questão merece, acompanhada da devida mobilização de recursos financeiros e humanos, é insuficiente em diversos países, tanto na arena internacional como na esfera nacional. Utilizando uma fórmula caricatural, eu diria que a fome persiste tanto por insuficiência de “mocinhos” como pela presença de “vilões”.
ME – Como a agricultura familiar pode contribuir para solucionar a equação da soberania alimentar e combater a fome de forma sustentável?
DS – A agricultura familiar é fundamental tanto para o acesso a alimentos adquiridos via mercado como para a alimentação pautada na produção agrícola própria. Quanto ao primeiro caso, basta lembrar que, em nível local e nacional, este setor tem um papel vital a exercer na manutenção da disponibilidade de alimentos a preços acessíveis. Efetivamente, a agricultura familiar é responsável pela dieta básica da população em diversos países em desenvolvimento.
Quanto ao segundo aspecto, é importante enfatizar que grande parte das pessoas que enfrentam a fome no mundo, que constituem 925 milhões de humanos segundo a última estimativa da FAO, exerce atividades agrícolas (FAO 2010, State of Food Insecurity in the World, Rome, FAO). A maior parte destes produtores, cerca de 500 milhões, são pequenos agricultores (Ifad 2010, Future of World Food Security, Rome, Ifad).
O apoio à capacidade produtiva da agricultura familiar é, desta forma, condição sine qua non para resolver o problema da fome no mundo.
* Darana Souza é pesquisadora do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), centrou sua trajetória profissional em desenvolvimento rural e segurança alimentar. Atuou em diferentes países em desenvolvimento como Brasil, Indonésia e Níger.
Fonte: Mercado Ético.
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